O fator humano
Moram na Amazônia 25 milhões de pessoas,
a grande maioria em áreas urbanas. É dessa
gente que depende o futuro da maior floresta
tropical do planeta. Veja quem são e como
vivem os atuais desbravadores do norte do Brasil
Nos anos 70, durante o auge dos grandes projetos de infraestrutura implantados pelos governos militares, a Amazônia era conhecida como o inferno verde. Uma mata fechada e insalubre, empestea-da de mosquitos e animais peçonhentos, que deveria ser derrubada a todo custo – sempre com incentivo público – pelos colonos, operários e garimpeiros que se aventuravam pela região. Essa visão mudou bastante nas últimas duas décadas, à medida que os brasileiros perceberam que a região é um patrimônio nacional que não pode ser dilacerado sem comprometer o futuro do próprio país. Com seus 5 milhões de quilômetros quadrados, a Amazônia representa mais da metade do território brasileiro, 3,6% da superfície seca do planeta, área equivalente a nove vezes o território da França. O Rio Amazonas, o maior do mundo em extensão e volume, despeja no mar em um único dia a mesma quantidade de água que o Tâmisa, que atravessa Londres, demora um ano para lançar. O vapor de água que a Amazônia produz por meio da evaporação responde por 60% das chuvas que caem nas regiões Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil.
Mesmo agora, com o reconhecimento de sua grandeza, a Floresta Amazônica permanece um domínio da natureza no qual o homem não é bem-vindo. No entanto, vivem lá 25 milhões de brasileiros, pessoas que enfrentaram o desafio do ambiente hostil e fincaram raízes na porção norte do Brasil. Assusta observar que, no intenso debate que se trava sobre a melhor forma de preservar (ou, na maior parte das vezes, ocupar) a floresta, esteja praticamente ausente o maior protagonista da saga amazônica: o homem. É uma forma atravessada de ver a situação, pois o destino da região depende muito mais de seus habitantes do que de papelórios produzidos em Brasília ou da boa vontade de ONGs. A prioridade de todas as iniciativas deveria ser melhorar a qualidade de vida e criar condições econômicas para que seus habitantes tenham alternativas à exploração predatória. Só assim eles vão preservar a floresta em vez de destruí-la, porque terão orgulho de sua riqueza natural única no mundo.
A exuberância da natureza contrasta com a qualidade de vida dos amazônidas. A imagem idílica do caboclo que vive no paraíso tropical e nele quer permanecer só tem correspondência com o mundo real na imaginação de quem vive longe dali. Mesmo aquele que mora em pontos distantes, só acessíveis por barcos, assiste às novelas em televisores com antenas parabólicas e energia elétrica proveniente de geradores a óleo diesel. É natural que queira viver com os confortos modernos presentes no Sudeste, e não como uma relíquia viva do século passado. O ribeirinho, assim como o índio em sua aldeia, prefere cozinhar em fogão a gás, nem que para isso precise pagar por esse conforto com bens retirados da floresta. Em áreas rurais, a ausência de comércio e de dinheiro faz do escambo uma forma corriqueira de abastecimento da população. Um gerador, para manter a TV ligada por duas horas, consome 1 litro de diesel, que no mercado local pode ser trocado por um "bicho de casco" – em geral o tracajá, tartaruga que pode alcançar 8 quilos e é um petisco tradicional. Como explicar a essas pessoas que caçar animais que há gerações são parte da dieta local é agora um crime ambiental?
Depois do período colonial, a primeira grande onda migratória para a Amazônia ocorreu na virada do século XIX para o XX. Hordas de flagelados por três secas sucessivas no Nordeste foram enviadas para extrair o látex. Estima-se que entre 300 000 e 500 000 tenham se instalado na floresta. O fim do ciclo da borracha não apenas deixou os seringueiros abandonados, mas também arruinou a elite bem-educada, europeizada, de Manaus e Belém. Durante a II Guerra, para aproveitar uma curta crise no fornecimento de borracha, mais 150 000 pessoas foram despachadas para o Acre, Amazonas e Pará. A terceira e mais importante onda migratória foi incentivada pelos militares nos anos 70. A Zona Franca de Manaus, o avanço da agricultura e da pecuária e os assentamentos do Incra são agora os atrativos para a transferência de tantos brasileiros para a região.
Esses migrantes, somados aos indígenas e moradores antigos, mesclaram-se para formar um "Homo amazonius", o brasileiro adaptado à região. O país não o entende muito bem. As políticas para a Amazônia geralmente focam a população rural, o chamado povo da floresta. Esse modo de pensar podia fazer sentido no início dos anos 70, quando apenas 3,5% dos habitantes da região viviam em áreas urbanas. Nas últimas três décadas, o perfil demográfico se transformou em ritmo acelerado. Hoje, 73% da população vive nas cidades – e seus problemas são similares aos dos habitantes de qualquer cidade do Sul ou do Sudeste, só que agravados pela falta de serviços básicos de infraestrutura.
As soluções que propõem manter o homem no mato, sem possibilidade de progresso pessoal, mostram resultados pífios. O exemplo mais flagrante é o das reservas extrativistas de subsistência, uma receita criada pelo líder seringueiro Chico Mendes nos anos 80. Há hoje 86 dessas reservas, habitadas por 300 000 pessoas. Visto que colher látex e castanhas se mostrou insuficiente para garantir uma vida digna, ocorre por lá uma volta a atividades mais lucrativas: derrubar as árvores, vender a madeira, abrir campos de pasto para o gado. Estima-se que algumas dessas reservas extrativistas já tenham perdido 20% da cobertura vegetal e abriguem 40 000 reses. O bom exemplo de sucesso está na outra ponta – aquela que prospera de costas para a floresta. A Zona Franca de Manaus, criada em 1967, concentra 550 indústrias modernas, que, no ano passado, alcançaram um faturamento de 60 bilhões de reais. Uma riqueza produzida sem que seja necessário derrubar uma única árvore. A instalação da Zona Franca de Manaus é apontada como uma das principais causas de o estado do Amazonas ser o menos desmatado da Amazônia. Seu exemplo poderia ser replicado na região com a criação de outras indústrias limpas, como as ligadas aos setores farmacêutico e de biotecnologia.
Qualquer projeto que pressuponha o desenvolvimento com sustentabilidade da Amazônia precisa incluir o desmonte de uma parcela considerável das termelétricas alimentadas a óleo diesel que fornecem a maior parte da energia para a região. Embora a Amazônia seja classificada como o pulmão do mundo, suas termelétricas despejam anualmente na atmosfera 6 milhões de toneladas de dió-xido de carbono (CO2), o principal gás do efeito estufa. Isso equivale ao dobro do que despeja no ar todo ano a frota de veículos da cidade de São Paulo. Numa região com tantos rios caudalosos, é preciso que as hidrelétricas respondam pela maior parte da energia. A principal vítima da hegemonia das termelétricas na Amazônia é, mais uma vez, a população. Há escolas que são obrigadas as transferir os alunos do turno da noite para o da manhã porque não há óleo diesel suficiente para mover o gerador e iluminar as salas de aula.
Vivem na Amazônia 400 000 índios de quase 200 etnias e em diferentes níveis de contato com a sociedade brasileira. As setenta tribos que permanecem isoladas em pontos remotos representam menos de 1% desse universo. Setenta e cinco por cento dos indígenas vivem na floresta. Mesmo assim, os índios também não querem saber de permanecer na pré-história. "Os que continuam na aldeia querem trazer a cidade para dentro dela", diz Almir, cacique da etnia suruí, de Rondônia. Os computadores e a internet estão presentes em muitas aldeias. Em toda a Amazônia, índios usam a rede mundial para vender artesanato, estudar e reivindicar direitos. "Para ter influência política, a internet é melhor que o arco e flecha", diz Almir, que no ano passado fechou um acordo com o Google para mapear as terras de sua tribo. Vinte e cinco por cento dos índios da Amazônia vivem nas cidades e muitos vão parar nas favelas e palafitas. A população indígena de Manaus já é mais numerosa do que a da maioria das reservas, com mais de 12 000 índios.
Um dos principais entraves ao desenvolvimento da Amazônia é que parte significativa dela é um território sem lei. Apenas 4% das terras da Amazônia têm títulos de propriedade. Numa imensidão que corresponde a 59% do território brasileiro, ninguém sabe quem é o dono da terra e quem a ocupa. "Não há exemplo no mundo de região que tenha se desenvolvido economicamente sem segurança jurídica", diz o filósofo Denis Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Em um ambiente de insegurança, as pessoas deixam de fazer investimentos a longo prazo para buscar apenas o benefício imediato", ele completa. Sem eliminar a anarquia legal e jurídica, fica difícil garantir a preservação da floresta ou preparar o terreno para melhorar a qualidade de vida do povo da Amazônia.